Jornalismo em Segurança de Paulo Nuno Vicente
Por trás da minha secretária acumulam-se os livros sobre o Iraque, a maioria dos quais – e os melhores – escritos por repórteres de guerra, antes da operação militar de 2003 ou apenas num breve período depois disso.
São relatos que nem sempre podem ser classificados de objectivos – e a discussão sobre o que é a objectividade levar-nos-ia para longe do objectivo destas notas – mas que nos dão um testemunho vivido e insubstituível da realidade.
Numa guerra, costuma-se dizer que a primeira vítima é a verdade, mas na presente guerra do Iraque é justo dizê-lo que a principal vítima foi mesmo a do portador da verdade, ou seja, o jornalista.
Nunca numa guerra foram mortos tantos jornalistas como nesta, nunca tantos pereceram vítimas do cumprimento do seu dever, e nunca se assistiu a uma política que tinha como objectivo deliberado a eliminação dos jornalistas.
Há muitas contas a saldar no Iraque, mas uma das mais importantes é sem dúvida a que temos com esta comunidade da imprensa que deu tanto de si para que alguma coisa daquela tragédia pudesse ser conhecido.
Na última vez que estive no Iraque e quando assisti a uma conferência com milhares de iraquianos na cidade de Ashraf (centro da OMPI - Organização dos Mujahedines do Povo do Irão - que, sob protecção militar norte-americana, tem funcionado como a verdadeira zona verde dos iraquianos, ou seja, a única zona onde eles podem pacificamente encontrar-se), verifiquei que os principais organismos da imprensa internacional estavam representados por iraquianos.
Se se tratasse de uma decisão editorial, o facto só seria de assinalar pela positiva, mas realmente não era esse o caso: tratava-se apenas de assegurar fontes mais ou menos técnicas de imagem ou de som a ser tratados, por outrem, fora do Iraque; o jornalismo internacional independente (ou seja, não integrado em nenhuma força beligerante), pura e simplesmente, tinha desaparecido.
Mas o jornalismo independente continuava, com cada vez maiores dificuldades e restrições. Sameerah al-Shibli – o meu primeiro e principal contacto no Iraque – estava ainda presente, em Fevereiro do ano passado, em Al Khalis, cidade sediada nas imediações de Ashraf e que se tornaria num dos principais centros de intervenção das brigadas Quods dos Guardas Revolucionários Iranianos.
Foi por essa altura que, já depois de ter perdido grande parte da família num massacre organizado na cidade vizinha de Al-Mughdadia (ao que se pensa, pelo responsável do exército iraquiano na Província), a Sameerah fez a reportagem de uma operação militar do exército iraquiano na aldeia vizinha de Al-Khalis, Abo-Tamor, onde um seu primo direito de doze anos foi enfiado num buraco e assassinado com um tiro na nuca.
Foi uma reportagem em que me baseei para apresentar uma queixa formal ao relator para as execuções extrajudiciais das Nações Unidas e que, tanto quanto me consta, terá sido tida em conta para remover o general iraquiano responsável (que substituiu o anterior, mas que tinha a mesma filiação política numa das organizações próximas do regime de Teerão).
Pouco depois, Sameerah viu o seu motorista barbaramente assassinado, depois de torturado, tendo presumido que o objectivo da tortura tinha sido o de conhecer os locais por onde ela passava a fim de organizar a sua eliminação, e teve que fugir, tendo eu conseguido organizar a sua fuga com a preciosa ajuda de Susanne Fischer e da Delegação de Suleymania do Instituto para o Jornalismo da Guerra e Paz.
Sameerah al-Shibli, por ora, está no Cairo, mantendo uma rede mais ou menos clandestina de repórteres, com os quais edita um jornal, o Iqraa – agora apenas electrónico, www.Iqraapress.com – que substitui aquele de que era editora.
Ainda há pouco tempo, quando acusou o chefe da polícia na província de Dyiala de ter organizado, em colaboração com a Al Qaeda, um atentado contra o líder do Partido Islâmico em Bakuba – atentado que provocou várias vítimas, entre militares norte-americanos e líderes iraquianos – recebeu ameaças de morte telefónicas, para si e para os seus.
Enfim, detalhes das histórias que ela tenciona publicar, assim que conseguir proteger o que resta da sua família, que se encontra escondida longe da sua cidade natal, mas ainda no Iraque, por não ter conseguido fugir para nenhum outro sítio.
Em Junho passado, Sahar al-Haideri – uma das mais importantes colaboradoras do Instituto – foi também assassinada, juntando-se assim a uma interminável lista dos mártires da imprensa.
A meu convite, Susanne Fischer deverá deslocar-se-á no próximo dia 6 de Maio ao Parlamento Europeu, para nos falar um pouco do seu trabalho e da realidade do jornalismo no Iraque, e essa será talvez uma oportunidade para continuar estas notas.
Bruxelas, 2008-03-27
Paulo Casaca